Como mulher e cidadã deste país, tenho a liberdade que quero e nada nem ninguém me impede de fazer o que quiser, a não ser eu própria e o que me faz sentir confortável ou não. Aliás, não precisamos de pensar na nossa liberdade, porque ela é um dado adquirido neste século XXI. Mas bem longe desta realidade estão muitos países do médio oriente, onde a vida das mulheres é controlada pelas famílias, pelas leis vigentes e tradições fortemente influenciáveis pela moral e pelo poder religioso, aspectos que têm ainda mais força fora das grandes cidades.
A escolha deste tema, vem a propósito de um filme que passou recentemente nos cinemas, “Mustang“, da autoria da cineasta turca Deniz Gamze Ergüven, e de um livro em Bd que acabei de ler intitulado “Love story à l’iranienne” com textos de Jane Deuxard e desenhos de Zac Deloupy.
Sobre o filme, e para quem não o viu, é passado na Turquia actual e conta a história de cinco jovens/adolescentes, irmãs e órfãs, que ficaram ao cuidado de uma avó e de um tio. Uma sucessão de episódios leva à vontade de as “despacharem” ou seja, casá-las. Uma teve a sorte de casar com quem gostava e namorava às escondidas, outra entra apaticamente num casamento arranjado pela família, a terceira suicida-se porque não concebe uma situação semelhante, e as duas que restam, inconformadas, fogem, num final que nos alimenta a esperança mas que, caso ocorresse na vida real, nos levaria a questionar qual seria o seu futuro. No meio desta história entram muitos aspectos que regem aquela sociedade, tal como a relação entre sexos, os testes de virgindade, os abusos feitos às escondidas, etc.
O livro, por sua vez, descreve o Irão actual e revela o conteúdo de entrevistas realizadas clandestinamente e sempre com algum risco pela autora e jornalista, a jovens entre os 20 e 30 anos, que aceitaram falar-lhe das relações amorosas, dos seus sonhos, desejos e também da política vigente e da força que o poder religioso tem sobre a sociedade.
O que ambos nos transmitem tem muito em comum na forma como as mulheres são vistas e tratadas nestes dois países. Gostava de destacar vários aspectos, apesar de alguns serem do conhecimento da maioria:
– O normal são os casamentos combinados pelas famílias, logo casamentos sem amor; para a família da mulher é fundamental que o futuro noivo tenha emprego estável, apartamento e carro.
– Teoricamente não pode haver contactos sexuais antes do casamento. Mas por vezes existem aproximações e explorações entre namorados. Se a mulher não for virgem, e uma vez que é grande a probabilidade da família do noivo pedir um teste de virgindade antes do casamento, se tiver dinheiro fará uma operação para reconstituição do hímen. Muitas, por não terem capacidade monetária, suicidam-se por medo dos pais, da família e do futuro marido. Mesmo que a mulher diga e insista que é virgem, a palavra dela não vale nada e o teste normalmente é pedido e realizado. Excepcionalmente, os noivos provenientes de famílias menos tradicionais e em que há a certeza de que o teste de virgindade não é pedido, mantêm uma vida sexual activa, mas sempre às escondidas;
– As mulheres foram educadas para servir o homem, para se preocuparem em tratar da casa, da família e em estarem bonitas. Os homens ditam as regras nas ruas, elas ditam-nas em casa.
Mas no Irão, particularmente, sendo uma sociedade muito mais tradicional e fortemente influenciada pelas leis dos líderes religiosos, outras regras se impõem:
– Homens e mulheres não podem frequentar espaços públicos sem estarem casados. Se o fizerem, podem ser obrigados a casar. Apenas no campus universitário, único lugar onde existem aulas mistas, isso é possível sem levantar suspeição;
– A falta de “alquimia” e de amor nos casamentos tradicionais leva actualmente a muitos divórcios, apesar das implicações morais para a mulher e do valor do “mehrieh” estar a aumentar consideravelmente. Este valor é determinado pelas famílias antes do casamento e é sempre dado pelo homem à mulher em caso de divórcio, mesmo que a iniciativa seja dela. Porém, as mulheres divorciadas são vistas como traidoras pela família;
– Os divorciados podem ter uma autorização dada pelos mollahs (líderes religiosos islâmicos) para “frequentarem” outra pessoa, sem risco de serem presos. Assemelha-se a um casamento temporário, mas com a condição de não viverem juntos. Uma mulher divorciada dificilmente é aceite por outra família para casamento;
– Estes mollahs, por sua vez, podem ter contactos sexuais fora do casamento tradicional, pois criaram leis para eles próprios. Instituíram o “sigheh”, que são autorizações temporárias, que podem durar dias ou anos, e que lhes permite, por exemplo, ir ter com prostitutas fora do país;
– A infidelidade é totalmente proibida, especialmente nas mulheres;
– Tudo é proibido, mas quase tudo se faz às escondidas: amar, fumar, dançar, etc;
– Existem a circular na rua os “bassidgis”, milhares de homens à paisana que tudo controlam relativamente aos costumes e comportamento de homens e mulheres;
– Para as mulheres é obrigatório o uso do véu e de um casaco ¾ quando estão na rua. Na via pública, existem mulheres que têm como função controlar os trajes femininos, nomeadamente a altura das calças, pois os pés não podem ser mostrados;
– É comum, e um sinal de poder e de emancipação, uma mulher iraniana fazer uma operação estética ao nariz para o arrebitar. Para elas é sinónimo de beleza e, consequentemente, a possibilidade de arranjarem melhores pretendentes e um melhor casamento;
Mas também noutros campos, o controle é severo. Deixo aqui alguns exemplos:
– Só é permitida a música em cerimónias religiosas, mas esta ouve-se e toca-se às escondidas noutros locais. Se quem os toca for apanhado, os instrumentos são confiscados; mas depois adquire outro, pois, apesar de proibidos, estão à venda;
– As cadeias de televisão estrangeiras são igualmente proibidas, mas através de uma ligação via net, muitas pessoas contornam isso por períodos limitados. A televisão por satélite também é proibida, mas cerca de 70% das famílias possui uma parabólica. De vez em quando aparecem brigadas de homens que circulam pelos telhados a destruí-las ou a roubá-las. E depois compram-se mais, porque também estas estão à venda….
– Os animais domésticos, nomeadamente os cães, por serem considerados impuros, são proibidos, abatidos e os donos sancionados. Porém, pessoas com mais posses têm-nos às escondidas….
Este resumo é sintomático do controle e da falta de liberdade que existe nesses países e sociedades. A esperança de mudança está latente na maioria dos jovens, mas eles têm a noção de quanto vai ser difícil quebrar com as tradições, tão ou mais fortes que o poder político. Levará muitas gerações.
Quem se deu ao trabalho de ler este post até aqui, poderá estar a pensar: nada disto é novo, já sabemos que é assim. Certo, mas a verdade é que realmente não sabemos, nem fazemos ideia do que será este tipo de vivência. Porque apesar das incongruências que existem na nossa sociedade, a verdade é que temos livremente acesso a tudo. E temos o mais importante: a liberdade de escolha, a liberdade de poder dizer sim ou não e a liberdade de amar quem queremos e de exprimir livremente os sentimentos que nos vão na alma.
Mesmo assim somos por vezes tão insatisfeitos e resmungões!