passeios da cidade

 

rua 2a

 

Pelos passeios de uma cidade deslizam vidas, cruzam-se olhares, vagueiam pensamentos.

São lugares de energias vividas, de sentires vários  que rolam ao ritmo de cada passada e, seguramente, lugares de muita indiferença como são imensas as vidas anónimas que os percorrem.

Por esses passeios se cruzam olhares efémeros, normalmente sem memória. Pontualmente, sem razão discernível, alguns são mais doces, agarrados a um sorriso e tocam a alma, sendo por isso mais duradouros. Outros são tão estranhos, que ficam gravados para a vida, envoltos numa aura de magia, como se tivessem um qualquer significado. Mas são apenas isso.
Os passeios são, por tudo isto, uma espécie de rios de emoções individuais ou partilhadas, que circulam pela cidade.

Quando se percorre amiúde o mesmo passeio, cruzamo-nos com pessoas que o fazem também de forma recorrente. Porque se trabalha na mesma área da cidade e os horários são semelhantes, os encontros acontecem naturalmente. Com algumas, o sorriso e um cumprimento aparecem com o passar dos anos, mas com outras, o olhar que se cruza é apenas isso, mais nada. Nunca houve um próximo episódio. Mas continuamos nesse ritual, assistindo mutuamente aos efeitos da passagem do tempo, o aparecimento das rugas ou dos cabelos brancos, o engordar ou o emagrecer, etc. Por vezes, o outro parece bem e saudável, mas noutros momentos triste, talvez doente. Mas nada sabemos.

Não havendo comunicação, entra em campo a imaginação e construímos um filme, sendo o guião baseado na postura, na passada, no olhar, ou se andam sós ou acompanhadas. Há pessoas em que é fácil imaginar-lhes a vida. Ou as vidas! É fácil imaginá-las com família, com filhos, sorridentes, a fazer desporto ou divertindo-se. Mas há outras que nunca nos transmitem dados para esse filme. É como se houvesse um muro, um filtro, uma aparente solidão na vida. E sempre que nos cruzamos com essa pessoa, sentimo-la como uma desconhecida. Para ela não temos uma história virtual na nossa imaginação.

Porém, de um momento para o outro tudo pode mudar. Foi o que aconteceu comigo há alguns dias.
Depois de muitos anos a me cruzar com aquele homem, que sempre vi sozinho, naquele dia ele estava com uma criança ao lado. No momento em que nos cruzamos, a criança perguntou algo, começando a frase por “Pai…”
Foi uma revelação e adorei aquele momento! Afinal ele tinha vida, emoções, era pai, provavelmente marido, e talvez ainda filho. Ia satisfeito e ouvi-lhe a voz, que saiu com algumas palavras que rapidamente desapareceram na brisa quente do dia ou, quem sabe, pousando na calçada portuguesa daquele passeio que tão bem conhecemos.

Fiquei feliz naquele dia! Por ele, por saber que afinal tem uma vida e afectos, e por mim… porque finalmente tenho alguns dados para construir o tal filme!

 

 

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4 thoughts on “passeios da cidade

  1. Apesar de “Sidewalk Stories” ser o nome de um filme, também podia ser o título de um conjunto de crónicas que, tenho a certeza, poderias iniciar com a tua escrita sensível e atenta, pontuada por aqueles desenhos e aguarelas que admiro.
    Aqui vai também uma história com um fim feliz, que se inicia num passeio de uma cidade.

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