escorrências

Quando um líquido atinge/escorre de forma continuada a camada mais superficial de uma pintura, vai deixar marcas, fenómeno a que tecnicamente chamamos de escorrências. Esses danos podem ser superficiais ou mais profundos, consoante o agente em causa e/ou o seu tempo de actuação. Na realidade, são “feridas” que alteram o equilíbrio material e visual de qualquer obra, estando posteriormente na mão de técnicos especializados a possibilidade de neutralizar esses danos a fim de recuperar a integridade física e estética entretanto perdida.

Recentemente tive em mãos uma pintura com imensas escorrências, o que exigiu um paciente e persistente trabalho de integração cromática…e obviamente, bastante tempo para divagar pelo meio…

…qualquer agressão, seja em palavras ou em atitudes, tem consequências;

…mesmo uma agressão mais superficial, originária de uma palavra menos conveniente ou de uma gesto que possa incomodar a sensibilidade de alguém tem os seus efeitos. Estes poderão ser passageiros ou persistir no tempo, o que depende principalmente da estrutura emocional e da maturidade da pessoa afectada;

… mais defesas tem igualmente uma pintura que esteja protegida com um verniz mais espesso, o qual concede uma maior protecção e resistência a danos superficiais. Pelo contrário, uma pintura com uma camada de verniz mais fina ou inexistente, sofrerá danos bem mais gravosos e profundos;

…seguindo esta linha de pensamento e voltando a nós, seres de carne e osso… também uma agressões mais profundas e de certa forma “incisa” causará maior perturbação, sendo possível que necessite de uma ajuda psicológica profissional, logo mais complexa e longa. Ou seja, muito mais investimento, atenção e tempo até o equilíbrio ser restabelecido.

Nuna pintura, dada a verticalidade e a linearidade destas linhas, normalmente bem definidas, o trabalho é exigente na medida em que é muito mais fácil harmonizar em cor e brilho fronteiras irregulares ou indefinidas, do que aquelas totalmente lineares. Aliás, não estarei errada ao afirmar que neutralizar esse tipo de dano é um dos trabalhos mais exigentes a nível da integração cromática numa intervenção de conservação e restauro em pintura.

Quem leu isto até aqui, talvez esteja a pensar que não são situações comparáveis. Realmente não são se pensarmos apenas na naturezas do que está em causa. Porém…de certa forma são, pois sendo tudo o que existe matéria e energia em movimento, qualquer agressão afectará a estabilidade dos átomos e moléculas que tudo estruturam, assim como a energia que os mantêm unidos.

Seja numa pintura… seja na matéria/energia que nos constrói e sustenta.

(Imagens de arquivo pessoal)

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10 thoughts on “escorrências

  1. A vida humana e não humana está (e é por isso que é tão perfeita) repleta de analogias e paralelismos. Reflexão muito interessante Dulce, e que boa sensação deve ser poder “devolver” vida e beleza a algumas peças! Boa semana para aí.

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    1. Sim, isto realmente não passa de uma analogia e de uma reflexão, bastante subjectiva aliás.
      Como em todas as profissões, há trabalhos que são extremamente estimulantes e gratificantes e outros que nada nos dizem. Curiosamente, depois de 41 anos como conservadora/restauradora de pintura e depois de trabalhar em centenas de pinturas de todo o género, neste momento prefiro trabalhos que me deem “luta”…porque num trabalho fácil e normal…o tempo e os dias simplesmente não passam!
      Obrigada Antónia e boa semana!

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  2. Eu sempre comento com escritores a respeito da responsabilidade da escrita. A palavra é uma arma engatilhada ou uma lâmina bem afiada, por isso, é preciso cuidado. Ferir alguém é coisa séria, pois não sabemos a extensão dos danos. Enfim, creio eu que uma tela, independente do que a atingiu, seja mais fácil “reparar”. Há técnicos especilizados em restauro. Mas os que há para ajudar os humanos e seus danos nem sempre são capazes de socorrer o humano e suas cicatrizes.

    Adorei o texto
    bacio

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    1. Cara Lunna, obviamente que, como eu bem refiro no final do texto, não são coisas comparáveis. Apenas “comparáveis” na dualidade matéria/energia. Há danos e danos, mas aqueles danos onde habita uma “alma” serão certamente bem mais danosos e profundos.
      Contudo, assim como uma ajuda médica/psicológica poderá não ser capaz de resolver perturbações profunda, também o melhor restaurador não conseguirá neutralizar completamente um dano muito gravoso. Ele não será detectado certamente pelo observador comum, mas quem tem o “olhar habituado” como um restaurador, sempre encontra essas “cicatrizes”.
      Ainda bem que apreciou o texto!
      Muito obrigada e desejo uma boa semana.

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  3. Deve ser um trabalho bem interessante, saber, pacientemente restaurar uma pintura. A comparação é perfeitamente justa. Na pintura à esquerda, até que não ficava mal, deixar assim, como uns fios de água escorrendo, ou as rugas do tempo.

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    1. Como em todas as profissões, há trabalhos que se gosta de fazer e outros que se gosta um pouco menos.
      Diria que é extremamente importante a empatia que se cria com a obra que vai passar dias e dias à nossa frente. No geral essa ligação acontece, mas por vezes simplesmente não acontece. Nesses casos pode ser mais complicado, porque o trabalho tem que ser feito da mesma forma e com a mesma qualidade.
      Quanto à imagem da esquerda, ela é apenas um pequeno detalhe de uma pintura bem maior.,,,e cheia de “rugas do tempo”!
      Obrigada e boa semana.

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  4. It’s an interesting metaphor Dulce, you expressed it well. We need some protection but we don’t want our personal coats of varnish to be so thick that nothing can make a dent. It’s tricky. 🙂

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    1. I really like metaphors and relating different things….
      Here, as in almost everything in Life, it is best to walk the middle ground: not too much “varnish” nor too little “varnish”!
      Thank you.

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