
Neste dia em que se comemora o centenário do nascimento do escritor Eugénio de Andrade (José Fontinhas /1923-2005), não posso deixar de o referir no discretamente uma vez que gosto bastante da generalidade da sua obra.
Muito se falou hoje sobre ele nos meios de comunicação nacionais, pelo que não me irei alongar. Pretendo apenas partilhar alguns poemas, neste caso seleccionados de um dos livros da sua autoria que tenho e que tirei ao acaso da estante. A sorte recaiu em Obscuro Domínio, uma edição da Editora Limiar datada de1986. Qualquer um dos outros seria também uma boa opção, pois todos têm poemas que gosto.
Espero que apreciem!
O SILÊNCIO
Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.
ARTE DE NAVEGAR
Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e a minha mão marinheiro.
NAS PALAVRAS
Respiro a terra nas palavras,
no dorso das palavras
respiro
a pedra fresca da cal;
respiro um veio de água
que se perde
entre as espáduas
ou as nádegas;
respiro um sol recente
e raso
nas palavras
com lentidão de animal.
PLENAMENTE
A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo
cintila,
a boca espera
(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)
espera o ardor
do vento
para ser ave
e cantar.
VAGUÍSSIMO RETRATO
Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser –
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
EM LOUVOR DO FOGO
Um dia chega
de extrema doçura:
tudo arde.
Arde a luz
nos vidros da ternura.
As aves,
no branco
labirinto da cal.
As palavras ardem,
a púrpura das naves.
O vento,
onde tenho casa
à beira do Outono.
O limoeiro, as colinas.
Tudo arde.
Na extrema e lenta
doçura da tarde.
ESTRIBILHOS
No interior da música
o silêncio
que regaço procura?
Que interior é esse
onde a luz
tem morada?
E há um interior,
assim como o caroço
dentro do fruto?
E como entrar nele?
É como num corpo?
ENTRE DUAS FOLHAS
Encostado à noite
sobe de mim
a haste
que recusa a flor
e procura um pássaro
para amanhecer –
o trigo é alto
e entre duas folhas
pode-se morrer.