olhar confinado…

…a partir de um décimo andar e em dias predominantemente cinzentos e com chuva!

Nas duas ultimas semanas, a casa tornou-se o fulcro dos nossos dias devido ao confinamento. Portugal está num momento muito difícil e ficar em casa é fundamental. Fazendo a fotografia parte dos meus dias, tinha que explorar e aproveitar o mais possível as circunstâncias impostas e o tempo disponível.

Quando olho para o tom monocromático e cinzento das imagens acima, sinto alguma tristeza. A verdade é que a minha personalidade nunca se deu muito bem com dias tão pesados e sem cor. Encontro neles alguma beleza, é verdade mas, decididamente, não são a minha onda, nem o meu mar. E quando são demais, pesam na alma…

Esse cinzento bloco de imagens revela um pouco da paisagem que me envolve. Vivo em Carnaxide, no concelho de Oeiras e a localização do prédio permite-me um olhar vasto, sendo as maiores referências o rio Tejo e a margem sul, a Serra de Monsanto e o chamado Farol da Mama de Carnaxide, uma enorme estrutura que mais parece um foguetão e cuja luz é fulcral para os barcos que atravessam de noite a barra de Lisboa.

Porém, quando um olhar se centra apenas em imagens gerais perde imenso. É essa a primeira tendência quando se vive num andar muito alto e com ampla vista. O meu teria perdido imenso se eu não decidisse limitar o ângulo e orientar a objectiva da máquina para o que estava mais próximo. Aí encontrei curiosos detalhes nunca registados com um olhar puramente fotográfico.

Estamos confinados… eu estou confinada… mas lá em baixo, na rua, a vida continua.

Carros, motas, bicicletas e peões dividem-se entre actividades obrigatórias e de lazer. Cada um terá certamente o seu propósito, como eu neste meu décimo andar, estou a cumprir o propósito de partilhar o que os dias me vão oferecendo.

No momento em que publico este post chove lá fora, está nevoeiro e a vista que tenho é mínima. Se, neste mês de Fevereiro que hoje se inicia o tempo decidir melhorar, talvez ainda faça um outro post dentro desta temática…mas com mais cor.

Até lá….. a solução é viver com saudades da liberdade e de um belo céu azul!

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esquinas…

 

b

 

Numa “esquina da rua”…

… procuramos orientação
… mudamos de direcção
… é fácil chocar com outro
… apanham-se sustos
… marcam-se encontros
… acontecem momentos inesperados
… cruzam-se olhares
… passa o efémero

 

Nas “esquinas da vida”…

… travamos
… equacionamos o percurso seguido
… sentimos medo de mudar
… estão as surpresas desagradáveis
… habitam os problemas
… repensamos situações
… tomamos decisões/opções
… mudamos de rumo
… resistimos
… lutamos
… somos corajosos
… saímos da zona de conforto

 

E nas “esquinas do céu”, um lugar que a imaginação concebeu:

… encontramos o receio de voar/viajar
… adormecem os sonhos
… perdemos a fé
… procuramos a contemplação
… caímos das nuvens
… esconde-se a vertigem
… divaga o olhar

…e, estou certa,

poderemos encontrar… duas nuvens a conversar!

 

 

(Dulce Delgado, Maio 2018)

 

 

passeios da cidade

 

rua 2a

 

Pelos passeios de uma cidade deslizam vidas, cruzam-se olhares, vagueiam pensamentos.

São lugares de energias vividas, de sentires vários  que rolam ao ritmo de cada passada e, seguramente, lugares de muita indiferença como são imensas as vidas anónimas que os percorrem.

Por esses passeios se cruzam olhares efémeros, normalmente sem memória. Pontualmente, sem razão discernível, alguns são mais doces, agarrados a um sorriso e tocam a alma, sendo por isso mais duradouros. Outros são tão estranhos, que ficam gravados para a vida, envoltos numa aura de magia, como se tivessem um qualquer significado. Mas são apenas isso.
Os passeios são, por tudo isto, uma espécie de rios de emoções individuais ou partilhadas, que circulam pela cidade.

Quando se percorre amiúde o mesmo passeio, cruzamo-nos com pessoas que o fazem também de forma recorrente. Porque se trabalha na mesma área da cidade e os horários são semelhantes, os encontros acontecem naturalmente. Com algumas, o sorriso e um cumprimento aparecem com o passar dos anos, mas com outras, o olhar que se cruza é apenas isso, mais nada. Nunca houve um próximo episódio. Mas continuamos nesse ritual, assistindo mutuamente aos efeitos da passagem do tempo, o aparecimento das rugas ou dos cabelos brancos, o engordar ou o emagrecer, etc. Por vezes, o outro parece bem e saudável, mas noutros momentos triste, talvez doente. Mas nada sabemos.

Não havendo comunicação, entra em campo a imaginação e construímos um filme, sendo o guião baseado na postura, na passada, no olhar, ou se andam sós ou acompanhadas. Há pessoas em que é fácil imaginar-lhes a vida. Ou as vidas! É fácil imaginá-las com família, com filhos, sorridentes, a fazer desporto ou divertindo-se. Mas há outras que nunca nos transmitem dados para esse filme. É como se houvesse um muro, um filtro, uma aparente solidão na vida. E sempre que nos cruzamos com essa pessoa, sentimo-la como uma desconhecida. Para ela não temos uma história virtual na nossa imaginação.

Porém, de um momento para o outro tudo pode mudar. Foi o que aconteceu comigo há alguns dias.
Depois de muitos anos a me cruzar com aquele homem, que sempre vi sozinho, naquele dia ele estava com uma criança ao lado. No momento em que nos cruzamos, a criança perguntou algo, começando a frase por “Pai…”
Foi uma revelação e adorei aquele momento! Afinal ele tinha vida, emoções, era pai, provavelmente marido, e talvez ainda filho. Ia satisfeito e ouvi-lhe a voz, que saiu com algumas palavras que rapidamente desapareceram na brisa quente do dia ou, quem sabe, pousando na calçada portuguesa daquele passeio que tão bem conhecemos.

Fiquei feliz naquele dia! Por ele, por saber que afinal tem uma vida e afectos, e por mim… porque finalmente tenho alguns dados para construir o tal filme!