o carro das emoções

Ao longo da vida sempre fui escrevendo sobre isto e aquilo, palavras que a memória recorda de uma forma mais ou menos precisa e que fui guardando sem objectivo.

Recentemente, ao organizar o disco externo cruzei-me com um texto que escrevi em 2005 sobre um carro que esteve connosco entre 1990 e 2013, um Ford Fiesta vermelho-escuro e com tejadilho, que me acompanhou em muitos momentos bons mas também noutros muito difíceis. Foi também o carro onde os meus filhos fizeram muitos treinos antes dos seus exames de condução e que usaram posteriormente em situações marcantes da sua vida.

De certa forma era o carro da família, sendo que no ano em que escrevi o texto que se segue ele completara os 200 mil quilómetros, ou seja, o correspondente a cinco voltas a este nosso planeta. A imagem acima foi tirada nesse dia de festa comemorado com um passeio a Sintra!

Segue-se o que então escrevi:

Gosto do meu carro com 15 anos, com pequenas amolgadelas, riscos e muitos pontos de ferrugem;

Gosto do meu carro com janelas que já não abrem bem, maçanetas que caem de vez em quando e que tem o pára-choques rachado;

Gosto do meu carro porque tem um rádio com personalidade, que não gosta de calor e que muda de posto e frequência quando lhe apetece;

Gosto do meu carro, porque sou a pessoa que melhor o entende e sabe o que ele precisa, apesar de me esquecer muitas vezes de controlar a pressões de pneus, de o lavar, e pontualmente deixar o depósito de gasolina rasar o vazio;

Gosto principalmente do meu carro porque lhe conheço os barulhos, as manias e sobretudo porque tem sido um carro “fiel” e que nunca me deixou em situações difíceis;

Mas também gosto do meu carro porque no dia dos meus 46 anos, quando em família nos deslocávamos para jantar, fez um barulho enorme e estranhíssimo durante uns segundos, barulho esse que nunca mais se repetiu. Para mim, só pode ter sido ele a dar-me os “parabéns”!…

Porém, gosto ainda mais do meu carro, porque há alguns meses que nele habita uma aranha! Acho piada a aranhas pela sua estratégia, mas decididamente a que habita no meu carro, não é uma aranha qualquer. Para mim é uma aranha que só pode ser inteligente, aventureira e apreciadora de emoções fortes!

Inteligente, porque decidiu viver dentro do espelho retrovisor direito e arma a teia entre ele e a porta, mas preservando o mais possível o vidro de fios. Na prática, isto significa que o movimento de baixar o vidro não afecta grandemente a estrutura da sua armadilha; ou se afecta alguns fios, é algo que rapidamente ela volta a consolidar.

Inteligente também, porque uma teia montada naquele lugar, apanha insectos durante a movimentação diária do carro. Digamos que “percebeu” que a probabilidade de ter ali alimento será bastante maior do que em qualquer outro local.

E finalmente aventureira e apreciadora de emoções fortes, porque além de ser uma aranha viajante que quase diariamente se desloca para Lisboa, aguenta perfeitamente auto-estradas e velocidades elevadas e, melhor ainda, já resistiu a três lavagens automáticas do carro! Imagino-a perante aquela máquina louca, com tanta água e tanta movimentação exterior, calmamente parada num cantinho do interior da caixa do espelho, pensando simplesmente, ”ok, eu construo tudo de novo!”

Acho espantoso que perante uma acção tão agressiva como esse tipo de lavagem não tenha desistido de viver ali. Aparentemente tudo fica limpo, mas um ou dois dias depois começam a aparecer alguns fios, depois outros, e assim sucessivamente até a estrutura/armadilha estar novamente montada.

Perante estes factos verdadeiramente singulares, só poderei fazer um comentário: gosto realmente desta aranha, porque ela aprecia tanto do meu carro como eu!

No dia 23 Março de 2013, mês em que o Ford Fiesta completou 23 anos e quando estava prestes a chegar aos 300 mil quilómetros tivemos um acidente, sem consequências para nós mas que ditou o seu fim, indo para abate.

Foi um dia muito triste para a família, sentir que a minha filha exprimiu muito bem num pequeno texto que partilhou num blog que então detinha. Escreveu o seguinte:

Um dia teria de ser. Hoje foi o dia. O dia em que o coração do carro que acompanha a minha família há 23 anos parou.

Vamos sentir saudades do seu cheiro, das histórias, das suas “manhas”, e principalmente da sua presença…

Atravessou duas gerações. Foi com ele que eu e o meu irmão nos aperfeiçoámos ao volante. Foi com ele que vivi muitas histórias nos meus passeios. Foi com ele que a minha mãe passou os 100mil, os 200mil e quase os 300 mil quilómetros… Serviu de casa para uma aranha de estimação. Era o nosso carro todo-o-terreno. Era um membro da família… não era só um carro… muito longe disso. Ele tinha vida própria.

Mas foi um carro feliz. Tenho a certeza disso. Um carro que viveu uma boa vida. E que fez a família feliz. Muito.

Custou. Foi forte. Mas é o ciclo da vida… e apesar das despedidas não serem fáceis, ninguém nos tira a alegria de o ter tido connosco estes 23 anos.

Obrigada Ford Fiesta. 

Passaram muitos anos desde estes eventos. O tempo passou…os meus filhos saíram de casa e têm as suas vidas…tenho dois netos…e desde então possuo um Honda Jazz, um carro que gosto muito, é fiável e muito confiável.

Porém…e apesar de já estar comigo há quase onze anos e diariamente andar com ele, os “laços que nos ligam” não se assemelham às emoções a que associo ao Ford Fiesta. Com este, tudo está bem e no sítio certo. Com o outro, toda a estrutura, à excepção do motor estava mal e era problemática, sendo o maior exemplo a água que nos ultimos anos entrava pelo tejadilho enferrujado…e que depois caía sobre nós sempre que havia uma curva mais acentuada. Uma aventura completa e todos os dias desafiante!

É verdade que gosto do carro que hoje me acompanha. Mas, contrariamente ao outro, este ainda não me deu os parabéns num qualquer dia de aniversário…nem foi ou é abrigo de qualquer aranha!😉